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As Confissões da Bahia em quadrinhos

setembro, 9 - 2023

1591.

O Santo Ofício de Lisboa envia à Bahia o inquisidor Heitor Furtado de Mendonça para acolher denúncias de crimes contra a fé católica em solo brasileiro.

Ele proclama “os tempos da Graça”, quando qualquer pessoa poderá vir fazer confissões e delações sem risco de ser punida pela Inquisição – uma anistia válida para os delatores, e não os delatados, a quem restava a alternativa de confessar ou sofrer os castigos inquisitoriais.

E as histórias vêm. Casos como o da costureira portuguesa Felipa de Sousa, acusada de ser amante de várias mulheres na então capital colonial. Ou da Santidade de Jaguaripe, uma seita fundada por indígenas tupinambá que se apropriava de elementos do culto católico para adorar uma divindade macho-fêmea-humana-animal: Tupanassú. Ou da Feiticeira Arde-lhe-o-rabo, cujos serviços eram muito requisitados por clientes interessadas em se livrar de alguém inconveniente em suas vidas. E outras, muitas outras…

Sodomia, heresia, feitiçaria; a cena pecadora da Bahia foi se revelando um cenário muito diferente – e perturbador – em relação a tudo o que o padre Heitor estava acostumado, para seus próprios pesadelos ou deleites secretos.

Estes são relatos que colhemos dos arquivos da Torre do Tombo de Lisboa para contar, com os mesmos detalhes vívidos que constam nos documentos de registro, um capítulo deveras peculiar da História do Brasil – uma história da Inquisição como se deu por estas bandas.

Estas são As Confissões da Bahia – romance em quadrinhos, com roteiro de Alexey Dodsworth e Cristina Lasaitis, e ilustrações de David Arievilo, Isaque Sagara, Tunak, Kirnna Schaun, Roberta Cirne e Débora Santos.

É para leitores maiores de 18 anos, e você pode comprar seu exemplar colaborando com o financiamento coletivo em catarse.me/confesse até dia 14/11/2023.

Deleite-se.

Amém.

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2021 – Nota sobre o ano mais interessante da minha vida

dezembro, 18 - 2021

Em 38 voltas ao redor do sol já colhi os mais diferentes frutos que a safra dos anos ofereceu. Já experimentei anos mirabilis e atravessei anos difíceis marcados por mágoas e traumas pessoais, já tive anos de descobertas que mudaram o rumo das coisas, mas sei que este ano de 2021 consegue desbancar todos os precedentes pelo dom de reunir tantas qualidades num só vórtice tumultuado e silencioso que produziu uma das jornadas mais intensas da minha vida.

Apesar de ser um ano de pandemia, no meu 2021 não houve catástrofes, mortes, casamentos, nascimentos — esses acontecimentos que costumam definir marcos na existência das pessoas. Quase todos os cenários que visitei aconteceram na solidão da minha intimidade. A tempestade que atravessei rugiu tão somente dentro de mim.

Gosto cada vez menos de falar sobre mim. Iniciar as frases com esse pronome – “eu” – às vezes soa tão carregado de ego que me dá uma sensação constrangedora, vulgar. A quem interessa “eu” a não ser a esta pequena pessoa que administra meus problemas e a umas poucas outras que por alguma razão doida gostam de mim?

E por que mesmo assim ainda preciso dizer “eu” de vez em quando? E o que fazer desta briga entre a necessidade de expressar pensamentos que me transbordam e o pudor que me aconselha a não expor minha intimidade?

Clarice Lispector, que era semideusa, dizia que estava morta quando não escrevia. Eu, que sou mortal, digo que escrevo muito menos do que gostaria porque contemplar a vida me distrai.

Mas meu 2021 — vamos a ele.

O ano de 2021 começou com a sensação de ser atirada num triturador de lixo, porque foi bastante literal essa circunstância de me tornar uma coisa jogada fora. Eu havia passado boa parte do ano anterior – um ano de isolamento na pandemia — empenhada na construção de um castelo, quando descobri que o terreno era feito de miragem. Nem eu entendia o buraco que havia se aberto repentinamente sob mim, só me restou desmoronar e me espatifar e — para não dizer que não lutei — agarrar qualquer locomotiva desgovernada que me levasse para longe da loucura.

Naqueles dias, em alguns momentos, o colapso era tão palpável que minha garganta se fechava e eu não conseguia respirar. Não era coronavírus, era simples desespero.

Eu tentava conversar com pessoas para me distrair — às vezes desesperadamente — mas de repente as palavras faltavam, eu emudecia e as deixava no vácuo quando percebia que nenhuma daquelas pessoas era quem eu realmente estava procurando.

Meus aquários, um hobby que antes significava uma grande paixão e fonte de prazer, tornaram-se um caldo de angústia: passei a olhar para os peixes, ali presos num cubo ínfimo de vidro, flutuando impotentes na solidão do universo, e me sentia naufragar em melancolia. Doei-os. Desmontei tudo. Esvaziei aquele tormento inexplicável.

E como nunca me aconteceu na vida, desencadeou-se um episódio de anorexia. Eu corria para me entorpecer. Eu não comia para desaparecer. Isso fazia algum sentido dentro da minha lógica, afinal, eu estava sobrando.

Passei à etapa de reformar o guarda-roupas que não combinava mais com meu corpo dez quilos menor, trocando de roupas com o ímpeto de uma criatura que precisa trocar de pele e se tornar irreconhecível.

Na solidão dos meses de isolamento forçado, a memória de outros momentos de felicidade sabotada — momentos de felicidade raros e que agora faziam falta – fez revolver mágoas antigas, de outras pessoas, que tomaram vulto para me assombrar.

Todas as mágoas, presentes e passadas, passaram a conviver comigo ao mesmo tempo, numa marcha existencial escabrosa.

A solidão, a carência e a tristeza me atiraram em uma busca ensandecida pelo item mais clandestino e proibido nos tempos de pandemia: um abraço. Um colo. Proximidade com algum ser humano que me aliviasse, por compartilhamento, a dor de existir. Como resultado, com uma sorte que só podia ser a minha, essa busca me levou a uma furada atrás de outra. Sintetizando com palavras emprestadas da sábia Clara Averbuck: “a carência é a mãe da roubada”.

Durante a primeira metade de 2021 fui um zumbi que trabalhava, chorava, emagrecia e fazia cara de paisagem para que ninguém soubesse o que me acontecia. Não sei para onde essa inércia teria me levado se eu não tivesse ganhado, meio que por milagre, a oportunidade de fugir.

Em fins de agosto embarquei para uma residência artística de dois meses na Bahia, que ainda não consigo encontrar palavras para descrever em termos de sorte, alívio, beleza, dádiva e gratidão. Quanto à gratidão, será uma dívida perpétua com meu amigo Alexey, que me convocou para o projeto vencedor do edital. Na noite em que coloquei os pés no Sacatar e observei uma lua cheia majestosa coroando aquele paraíso de mar e de coqueiros, pensei “isto vai passar rápido” — foi o aviso autoimposto para que eu mantivesse à superfície da consciência, a cada instante daqueles dois meses, a disposição e a atitude de aproveitar tudo o que aquela experiência tinha a me oferecer. Eu nadei naquelas águas frescas de mangue segurando a correnteza entre meus dedos como se pudesse segurar o tempo. Sorvi com imensa fome de companhia a presença abençoada dos amigos. Entreguei-me com sinceridade a cada entidade terrestre ou divina que veio a mim naquele país de fábula, por estranho que isto soe. Meu peito só sabia abraçar aquele horizonte a cada vez que meu olhar nele se perdia. Minha memória registrou em pergaminhos fotográficos aquele dia a dia quase onírico, que ficará plasmado com ares de lenda na minha história.

Ganhando um pouco de distanciamento da minha existência anterior, durante a residência constatei como era pesada a bagagem de mágoas que estava carregando. Eu só sabia que precisava fazer algo a respeito – me proibi de voltar daquela viagem sem resolver tais questões, ainda que eu não fizesse ideia de como resolvê-las.

Fazer estágio no paraíso me fez bem, mas era de certa forma tão distante da realidade que eu precisava de uma almofada para aparar a aterrissagem. Quando terminaram os dias da residência, não voltei para minha terra, dei-me uma estada de um mês e meio na cidade da Bahia — na verdade, fui procurar na Salvador real os traços da Salvador dos ficcionistas, que porventura não encontrei.

Foi uma estada cheia de delícias e de percalços; extremamente tensa e reveladora. Em Salvador, meu choque com a realidade após deixar a atmosfera de mimos de Itaparica foi benéfica e de certo modo terapêutica. Ganhei um conhecimento precioso para a obra que estou escrevendo. Encontrei alívio para algumas carências mundanas. Pude contemplar o amanhecer por janelas distintas. Ganhei hematomas de briga. Deparei com problemas alheios muito maiores que os meus.

Senti saudades de casa.

E talvez o troféu mais precioso, o meu tesouro de viajante: descobri portas para experiências novas. Curiosamente, essas eram exatamente as portas por onde eu precisava passar para me desembaraçar da minha bagagem de mágoas. Foi um louco acaso, mas encontrei uma forma eficaz de lidar com as questões que me perturbavam com o mais surpreendente dos achados. (Lamento a descrição em códigos, fica a critério da imaginação do leitor decodificá-los.)

As portas de que falo — quando as atravessei, me deparei com um cenário de imensa beleza que era o mapa da minha vida, em uma sinfonia dentro da qual cada harmonia e desarmonia retumbava em significado. A parte vulnerável de mim desapareceu por um momento, e fui capaz de visualizar — e não apenas visualizar, mas revisitar — minha vida inteira e as pessoas que passaram por mim. Mesmo entre os que me magoaram, fui capaz de enxergar cada uma dessas pessoas na sua solidão e entender suas dores e as prisões que as limitavam. Avaliei com clareza o peso de cada relação na minha vida. Senti culpa por todas as inúmeras vezes que escolhi não pensar nas dores dos outros porque me era conveniente. Estive de novo com os que já partiram. Fui aos prantos com o sentimento de beleza e de sublimidade. Transbordei com inundações dolorosas de amor e de compaixão por tudo o que existia (e por mim mesma, pequenina, entre todas as coisas) — parecia ter tocado uma esfera divina: eu, que sou ateia, embarcando nisto que se pode descrever como o amor de Cristo e a compaixão de Buda?

Esse outro lugar — não seria prático, mas posso dizer que não me incomodaria viver a vida inteira nessa dimensão — e então eu seria um anjo, não uma ser humana. Mas a experiência que ali vivi eu posso guardar e usufruir, e vários anos de terapia não teriam me concedido o mesmo.

Hoje as coisas que realmente importam tremulam límpidas na superfície da consciência, e percebo que tenho muito trabalho a fazer.

Contam-se na ampulheta os dias para o término do lendário ano de 2021 e meu peito só consegue palpitar “Uau!”. Que jornada, senhoras e senhores! Quem diria?

Passei por anos que consigo definir facilmente como bons ou ruins. Mas a aventura deste 2021 é, talvez, a mais interessante, a mais louca, a mais gratificante e possivelmente transformadora da era cristina.

Que esta bússola jamais me deixe na mão.

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Algo que escrevi na partida do paraíso

novembro, 9 - 2021

É sexta-feira na Ilha de Itaparica — minha última sexta-feira de residência no Sacatar e eu acabo de me sentar com meu notebook perante uma janela com vista para o mar da Baía de Todos-os-Santos. Nesta sala onde me instalei tenho a companhia de uma sereia dourada — é Oxum, e não apenas Oxum, mas minha mãe entre os orixás, segundo me contaram os búzios em uma de minhas várias descobertas pessoais aqui na ilha. Contudo, a vista que tenho é presente de Iemanjá: a maré está baixa e escurece sob a ventania, as árvores choram com seus contornos de sombra ao fundo de um anoitecer cor de lilás. Enquanto escrevo, estou banhada em vento (ele é bem-vindo, foi um dia de calor abismante) e ele ocupa cada milímetro da minha existência: é o toque onipresente na minha pele, é o sussurro nos meus ouvidos, é o arejar dos pensamentos — aqui, com o vento, estou no presente, e creio que nunca vivi tanto nesse lapso escorregadio que chamamos de agora.


Realizei um sonho de longa data ao vir fazer uma residência artística — era algo que há muito eu queria. Minha sorte ao ser selecionada com meus colegas de projeto merece a nota de que esta não foi uma situação corriqueira — não em 2021, não na rota de saída de uma pandemia. Uma residência artística no fim de uma pandemia não se parece exatamente com férias felizes em que a gente trabalha — é inevitável o sentimento de ter sido catapultada de um purgatório de isolamento e tensão para o paraíso, o que confere ao momento um rosto que não é o de uma pausa, mas de uma verdadeira transição ou divisor de águas.


Ainda isolada da maior parte do mundo, porém nas mais risonhas condições, tive a oportunidade de repensar minha vida todos os dias. Saída de uma caixa onde era uma prisioneira saturada com minha própria presença, aqui deixo minha existência tomar fôlego na brisa. Consigo enxergar meu passado e minha jornada por ângulos que outrora me escapavam.


Com o privilégio das boas companhias, percebi com aguda nitidez quão tenebrosa é a falta que os outros me fazem, e quanta vida me foi tomada nesse desperdício que foi um tempo exagerado de solidão. Aniversariei durante a residência, sem poder escapar da constatação que, embora meu espírito ainda se sinta nos horizontes da adolescência, minha cota de juventude se esgota e já não compatibilizo as idades que envergo por dentro e por fora. Por fim, identifiquei que trouxe comigo uma bagagem pesada de questões velhas que precisam ser tratadas — e que para o meu bem e o das pessoas envolvidas não posso retornar para minha antiga vida antes de resolvê-las.


Atravessaram-me dez musas enquanto aqui estive — e não é exagero; as musas me trouxeram até a Bahia, nada mais justo que ter aqui minha lua de mel com elas. Tenho uma missão importante para com as musas e para comigo: tenho uma obra para acabar e estou em plena viagem por um mar que liga partes mutuamente estranhas de uma mesma vida, preciso completar a travessia. Não sei o que me aguarda, mas sei que ela recomeça — insignificante como pode ser a vida de uma pessoa, e decisiva sendo a minha.


A pessoa que partiu há dois meses não pode mais voltar — a pessoa precisa se reinventar para bem-viver. Entrego meu barco aos bons ventos — com o auxílio das musas, dos amigos, dos orixás e de todos os santos desta Bahia.


15/10/2021

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Sal e Fogo: Uma outra história de Sodoma

setembro, 10 - 2020

Agora está disponível na Amazon BR minha noveleta Sal e Fogo, que foi primeiramente publicada na antologia A Fantástica Literatura Queer volume vermelho (Tarja Editorial, 2011) e reeditada em ebook pela editora Dandelion.

Sinopse:

“Um dos visitantes se dirigiu ao nosso pai: ‘Chame os seus conhecidos; seus genros, suas filhas, quem mais tiver em conta e mande que saiam da cidade, pois nós destruiremos este lugar.’ Foi preciso que ele repetisse uma segunda vez para que nosso pai saísse da sua paralisia. ‘Destruirão? Por quê?’”

Não há quem nunca tenha ouvido falar do episódio bíblico de Sodoma e Gomorra; no entanto, há certas peculiaridades dessa história que poucos conhecem: que não foram destruídas apenas duas, mas quatro cidades do Vale do Sidim e mais o seu mar, o Mar Morto; que uma mulher fugitiva virou estátua com um vislumbre da destruição; que as pessoas dignas poupadas da morte pelo Deus dos hebreus foram as mesmas filhas que embebedaram e seduziram o próprio pai na sequência da fuga.

Apenas a ficção científica permite um voo de imaginação capaz de responder a tantos porquês semeados por esta que é uma das histórias mais intrigantes do Velho Testamento. Narrada pelo olhar de Jael e Zahara, as filhas de Lot jamais nomeadas na Bíblia, a noveleta “Sal & Fogo” é uma jornada adentro dos portais e das noites de Sodoma, dando a conhecer seus costumes, sua história, sua religião e o cotidiano da vida junto ao mar salgado nas cidades do Sidim — até o dia em que vieram os estranhos mensageiros de Deus trazendo a destruição em sua bagagem…

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Para não esquecer que falei dos trólebus…

agosto, 4 - 2020

Preciso dizer que eu entendo totalmente essa caldeira fervente, esse sangue nos zóio que faz militâncias puxarem o facão do cancelamento diante de qualquer deslize, ato falho ou opinião controversa vindo de alguém do outro lado das trincheiras que quis ou não ofender.

Já puxei esse facão antes, ele é meu velho conhecido. Já liguei para livraria que sediava evento de psicanalista famoso para avisar que a sumidade disponibilizava em seu site áudios de palestras em que ele descarregava baboseiras homofóbicas em tom de sabedoria. Quando me pus a fazer justiça pendurada no telefone, eu não queria a ruína de uma carreira, apenas que alguém puxasse a orelha do infeliz, porque me era insuportável a ideia de que ele seguiria impune.

“Lugar de fala”, então, é uma coisa que posso visceralmente definir: é o tapão que quero dar em todo e qualquer homem que defenda que meu útero está sob jurisdição estatal — e que geralmente dou, em retórica, se estiver ao meu alcance.

Para quem vai de turista em cima do trólebus de uma questão identitária, parecem exageradas essas reações militantes — mas para quem está nos trilhos, cada visão da roda faz reviver o terror pessoal e muito real desse atropelamento, que já aconteceu uma ou inúmeras vezes, senão banal e cotidianamente. São reações radicais porque a dor que se sente é deveras radical; não é simples tratar com leveza e temperança o incauto quando a vida lhe deu uma bagagem pesada para carregar.

Minha mestra Ursula K. Le Guin comentou certa feita que sua posição de mulher branca lhe deu a vivência dos dois lados das questões identitárias — coisas que ela explorava em suas obras, nas quais as situações injustas abundavam, mas sempre havia olhares sobre os diferentes lados de uma questão.

Vendo-me em posição semelhante, preciso dizer que eu também entendo o drama do incauto. Por várias vezes me vejo empatizar com a pessoa branca que por genuína sem-noçãozice, ingenuidade ou descuido — mas sem dolo ou intencionalidade — acaba escorregando na geleia ao tocar em questões étnicas e vira o alvo do dia. Empatizo, obviamente, porque amanhã eu posso ser essa pessoa — qualquer um de nós pode.

Adentrar um território estrangeiro ao seu lugar de fala é — e talvez daqui para frente sempre será — pisar em ovos, tocar em vespeiros: não serão tolerados erros, descuidos ou acidentes de comunicação, não haverá infinita boa vontade para a compreensão de seu ponto de vista. Porque a dor impingida ao outro nos colocou automaticamente em trincheiras, e independente do quanto se enfatize que você é um aliado, o menor deslize pode desnudá-lo como uma fraude.

A dor do cancelamento é legítima, mas é preciso lembrar que é produto secundário daquela dor muito física e dilacerante dos trólebus com os quais a vida insiste em atropelar as pessoas.

Entendo que será muito ruim, de fato, se o diálogo, o debate e a troca de experiências forem desencorajados no exercício diário e necessário de desfazer as tais trincheiras. Que conste: eu quero que héteros falem e se expressem sobre o universo LGBT, assim como quero que homens mergulhem nas vivências das mulheres quando a oportunidade se apresenta. Escrevam histórias, falem sobre isso quando tiverem vontade, e eu deveria dizer “não tenham medo de errar” pois erros são inevitáveis no amadurecimento pessoal sobre qualquer questão — mas como direi “não tenham medo de errar” quando repaginamos o ostracismo na era da internet?

Eu entendo que tenho que acalmar meu sangue nos zóio e não afiar tanto minha peixeira militante, usar como mantra sagrado o mote “não batereis em vossos aliados” e canalizar minhas energias a quem realmente inferniza a vida de tantos com real dolo e intenção.

Todos nós, as vítimas e os turistas, precisamos pôr um breque nesses trólebus que passam por cima das pessoas. Até para que a gente consiga, por fim, esfriar essa caldeira que nos faz hiper-reagir.

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Os arquitetos e os jardineiros

agosto, 3 - 2020
George R.R. Martin certa vez categorizou os escritores em dois tipos: o escritor arquiteto, aquele que projeta toda a estrutura de uma história antes de escrevê-la, e o escritor jardineiro, aquele que planta a semente de uma história e deixa o trabalho evoluir e ganhar sua própria forma, naturalmente, enquanto ele rega e faz as podas.
 
Martin, ele mesmo, se considera um escritor jardineiro, e me parece que aí está uma boa razão para a dificuldade de encerrar sua série de livros mais aguardada. Explico mais adiante.
 
Como escritora, me meti a ser arquiteta, topógrafa e ourives. Não consigo dar início a um texto sem ter uma boa ideia de onde ele começa, por onde segue e onde termina. Entendo que o projeto em si é uma parte até que pequena do trabalho, além de ser a mais divertida (não entendo por que alguns escritores preferem dispensá-la). Para mim, a execução é a parte realmente suada; mas como escritora tenho uma paixão pelo acabamento, que é onde deixo minha assinatura. Perfeccionismos deixam o trabalho demorado — fato —, porém, num mundo literário superpovoado de genéricos, sinto que não tenho nada a perder.
 
Mas ao pensar melhor naquelas categorias de escritor aventadas, me dou conta que talvez não exista essa coisa de “escritor arquiteto”; talvez sejamos, na melhor das hipóteses, paisagistas. Porque, como foi bem colocado na analogia de Martin, as histórias são vivas e elas insistem em crescer seus galhos e suas raízes onde você não planejou, e é aí que você, o arquiteto, tem que ser um pouco jardineiro também.
 
Por isso mesmo, o projeto de uma história é uma construção contínua: vai se transmutando no desenvolvimento do trabalho. Ao passar os últimos anos dando andamento a um romance, me surpreendi como tocar um projeto pré-planejado envolveu repensá-lo constantemente. A história que parece totalmente escrita nos pensamentos — ou mesmo em montanhas de rascunhos — é só miragem: ela não tem sustentação enquanto não vê o cimento que gruda todos os seus tijolos. Eu mesma não sabia se o enredo que tinha exaustivamente planejado ao longo de anos realmente funcionava até que, nos últimos dias, fizesse o exercício de encadear evento por evento. Eis que só com as tramas alinhavadas você consegue enxergar os buracos e as pontas soltas gritando por solução.
 
Tentar ser escritor arquiteto de uma obra grande ou complexa é difícil. Mas ser jardineiro é bem uma loucura, parabéns àqueles que conseguem.
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O poema do “amor que não ousa dizer seu nome”

maio, 4 - 2020

cujo título original é Two Loves, foi escrito por Lord Alfred Douglas, o amante de Oscar Wilde, em setembro de 1892 e publicado na revista The Chameleon em dezembro de 1894. Meses depois, em abril de 1895, foi mencionado durante o julgamento que culminou na condenação de Oscar Wilde por atos de indecência, no intuito de pressioná-lo a confessar seu *crime* ao inquirir dele uma explicação sobre tal eufemismo para a homossexualidade.

A expressão que encerra o poema – “o amor que não ousa dizer seu nome” – foi mencionada por Wilde em sua carta-livro De Profundis, e *meio que* se consagrou como se tivesse sido o próprio Wilde seu criador.

Transcrevo aqui a íntegra de sua origem:

 

Two Loves
Lord Alfred Douglas

I dreamed I stood upon a little hill,
And at my feet there lay a ground, that seemed
Like a waste garden, flowering at its will
With buds and blossoms. There were pools that dreamed
Black and unruffled; there were white lilies
A few, and crocuses, and violets
Purple or pale, snake-like fritillaries
Scarce seen for the rank grass, and through green nets
Blue eyes of shy peryenche winked in the sun.
And there were curious flowers, before unknown,
Flowers that were stained with moonlight, or with shades
Of Nature’s willful moods; and here a one
That had drunk in the transitory tone
Of one brief moment in a sunset; blades
Of grass that in an hundred springs had been
Slowly but exquisitely nurtured by the stars,
And watered with the scented dew long cupped
In lilies, that for rays of sun had seen
Only God’s glory, for never a sunrise mars
The luminous air of Heaven. Beyond, abrupt,
A grey stone wall. o’ergrown with velvet moss
Uprose; and gazing I stood long, all mazed
To see a place so strange, so sweet, so fair.
And as I stood and marvelled, lo! across
The garden came a youth; one hand he raised
To shield him from the sun, his wind-tossed hair
Was twined with flowers, and in his hand he bore
A purple bunch of bursting grapes, his eyes
Were clear as crystal, naked all was he,
White as the snow on pathless mountains frore,
Red were his lips as red wine-spilith that dyes
A marble floor, his brow chalcedony.
And he came near me, with his lips uncurled
And kind, and caught my hand and kissed my mouth,
And gave me grapes to eat, and said, ‘Sweet friend,
Come I will show thee shadows of the world
And images of life. See from the South
Comes the pale pageant that hath never an end.’
And lo! within the garden of my dream
I saw two walking on a shining plain
Of golden light. The one did joyous seem
And fair and blooming, and a sweet refrain
Came from his lips; he sang of pretty maids
And joyous love of comely girl and boy,
His eyes were bright, and ‘mid the dancing blades
Of golden grass his feet did trip for joy;
And in his hand he held an ivory lute
With strings of gold that were as maidens’ hair,
And sang with voice as tuneful as a flute,
And round his neck three chains of roses were.
But he that was his comrade walked aside;
He was full sad and sweet, and his large eyes
Were strange with wondrous brightness, staring wide
With gazing; and he sighed with many sighs
That moved me, and his cheeks were wan and white
Like pallid lilies, and his lips were red
Like poppies, and his hands he clenched tight,
And yet again unclenched, and his head
Was wreathed with moon-flowers pale as lips of death.
A purple robe he wore, o’erwrought in gold
With the device of a great snake, whose breath
Was fiery flame: which when I did behold
I fell a-weeping, and I cried, ‘Sweet youth,
Tell me why, sad and sighing, thou dost rove
These pleasent realms? I pray thee speak me sooth
What is thy name?’ He said, ‘My name is Love.’
Then straight the first did turn himself to me
And cried, ‘He lieth, for his name is Shame,
But I am Love, and I was wont to be
Alone in this fair garden, till he came
Unasked by night; I am true Love, I fill
The hearts of boy and girl with mutual flame.’
Then sighing, said the other, ‘Have thy will,
I am the love that dare not speak its name.’

lord-alfred-douglas

Lord Alfred Douglas (1870-1945)

Pesquisando internet afora, não encontrei uma tradução para a língua portuguesa do poema de Lord Alfred Douglas, então resolvi elaborar uma por minha própria conta.

Nesta tradução optei pela preservação dos elementos formais usados por Douglas, o que exigiu deixar a estrita fidelidade em um plano secundário. O poema não faz separação de estrofes, porém traz rimas alternadas em esquema de quartetos e sextetos (2 quartetos – 5 sextetos – 9 quartetos). Os versos originais são endecassílabos, mas para melhor adaptá-lo ao português apliquei dodecassílabos.

 

Dois Amores
tradução de Cristina Lasaitis

Sonhei estar no alto de uma pequena colina
E diante de mim abria-se o terreno, análogo
a um jardim baldio, que a seu alvitre produzia
botões e flores. Havia sonhadores lagos
de breu sereno e lírios de cor inocente,
flores de açafrão e violetas rubras e brancas,
e os lilases com aparência de serpente
mal eram vistos sobre a relva e a verde trama.
Olhos azuis de pervincas ao sol piscavam;
havia flores pitorescas, antes incógnitas,
tingidas pela lua, ou que do caprichoso
espírito da Natureza se sombreavam,
enquanto esta outra bebeu a nota transitória
de um breve momento do entardecer radioso.
Folhas de grama que em cem primaveras foram
nutridas por estrelas, primorosamente;
e banhadas no mesmo orvalho perfumado
que a taça dos lírios enche, e que vislumbraram
pelos raios de sol a glória de Deus, tão somente,
pois o amanhecer não torna o Céu maculado.
Mais além, brusco, erguia-se um muro de pedra
sob musgoso veludo. Ali fiquei, perplexo
a observar lugar tão bonito e doce e estranho.
Enquanto me assombrava, da parte oposta a esta
chegou um jovem, que levantou a palma num gesto
contra o sol, suas madeixas em desarranjo
ao vento ornadas de flores; na mão levava
um cacho roxo de uvas roliças; seus olhos
eram claros de cristal. Branco como a neve
intacta dos montes gelados, nu ele estava.
Lábios da cor do vinho que caíra no soalho
de alabastro; de calcedônia era sua pele.
De mim se aproximou, amáveis lábios cindidos,
Segurou minha mão e minha boca beijou,
deu-me de comer suas uvas e disse: “Vem,
te mostrarei imagens da vida, doce amigo,
e as sombras do mundo. Repara desde o sul
como o espetáculo sem fim previsto vem.
E — oh! — vi caminhar nos jardins do meu sonho
duas figuras na luz dourada da campina
fulgurante. O que parecia lindo, risonho
e exuberante ecoava doce melodia
cujo refrão enaltecia as damas mais galhardas
e o jovial amor de um menino e uma menina.
Com olhos brilhantes, sobre a grama dourada
dançante, seus pés trotavam com alegria.
Trazia nos braços um alaúde de marfim,
as cordas de ouro como o cabelo das moças,
e cantava com voz de harmonioso clarim.
Em volta do pescoço, três cordões de rosas.
Mas havia um colega caminhando ao seu lado,
terno e lastimoso, com olhos esquisitos
pois eram tão assombrosamente iluminados.
Destarte me olhou e suspirou vários suspiros
que me comoveram. Possuía lábios rubros
feito papoulas; e suas faces eram pálidas
como os lírios. As mãos se crispavam em punhos,
mas vez ou outra se rendiam. De flores da lua alva
era a sua coroa, na cor dos lábios da morte.
Sua túnica rubra ostentava o áureo bordado
de uma grande cobra de hálito flamejante.
Quando o vi, para ele gritei, desconsolado:
“Amável jovem, dize-me por qual razão
andarilhas por este reino encantador
tão triste e suspirante? Conta de antemão,
qual é teu nome?” E ele diz: “Meu nome é Amor.”
De imediato, o primeiro se voltou pra mim
e gritou: “Ele mente, pois Vergonha é seu nome!
Amor sou eu, e estava habituado a neste jardim
andar sozinho, até que ele veio sem que a noite
o invitasse. Sou a chama do amor verdadeiro,
que mutuamente o rapaz e a moça consome.”
E diz o outro, suspirante, “Pois como queiras,
eu sou o amor que não se atreve a dizer seu nome.”

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A crônica crônica do natal

dezembro, 25 - 2019

Entre Buda e Apolo, Hórus e Shiva: Jesus.

Jesus, que não andava com os sacerdotes do templo, preferia socializar com as putas e os vagabundos. Torcia o nariz pros ricos. Quebrava barraquinhas reais ou metafóricas ou metafísicas.

Jesus: todo ele a contracultura.

Jesus, judeu e filho de refugiados, era também Jesus de pele preta. E do mesmo modo, Jesus foi – é – mulher. É também gay. Travesti. Morador de rua…

Jesus vem aos anos 2020 em sua carapaça de camaleoa para cumprir o seu ciclo eterno de nascimento e crucificação, objeto que é da eterna redenção da humanidade [preste muita atenção nisso].

Veja ele passar: pela via crúcis ele segue, tropeçando no salto-alto, um pouco bêbada de vinho, enquanto vai recebendo ofensas, colhendo tapas, sendo o para-raio de bombas de uma estranha multidão farisaica que prorrompe de ódio santo em coquetéis molotov falando em Jesus.

Feliz aniversário, gata.

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Pílulas de Oscar Wilde

novembro, 13 - 2019

Mais do que um blogayro de moda do século XIX, Oscar Wilde foi aquele cara que amou a arte, compreendeu-a e defendeu-a incansavelmente brandindo sua elegantérrima bengala com castão de ouro.

Foi de moderno para eterno, e, quem diria, chega ao século XXI sendo avant garde: cavaleiro contra a censura, essa cafonice que nunca quer sair de moda.

É preciso resgatar algumas das suas pílulas de sabedoria, que continuam atuais agora às 15h do desde sempre.

“Toda arte é bem inútil.”

“A arte não é moral nem imoral, mas amoral.”

“É o espectador, e não a vida, que a arte de fato espelha.”

“Aqueles que encontram significados feios em coisas belas são corruptos e não possuem nenhum encanto. Isso é um defeito.”

Numa síntese de poucas palavras, Wilde expressa da forma mais galante que já se ouviu no chá das cinco a máxima “deixem os artistas se expressarem, caceta!”.

Wilde sabia – e avisava – que a condição humana é insuportável sem arte, e que a arte precisa ser livre para cumprir seu ideal.

Por essa razão, quando as discussões do mundo literário desenrolam diante de mim seu rocambole de problematizações, acabo me voltando àquelas máximas:

A arte só faz sentido livre.

Livre para não ser gostada. Livre para ser xingada. Livre para ser problematizada – ok. Mas nenhum de nós, no papel de artista, iria querê-la com um grau sequer a menos de liberdade.

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Pra não dizer que não falei dos icebergs

novembro, 11 - 2019

Trabalhando com literatura, a cada dia fica mais vívida essa sensação bizarra de estar tocando violino enquanto o Titanic afunda.

De minha parte, suspeito que o que todo violinista de Titanic almeja, no íntimo, é que sua música alcance um tal nível de beleza que se torne capaz de anestesiar o desespero dos que estão condenados a afundar. Ou então, que a erudição de sua música se tornasse poderosa o bastante para reverter o tempo, remendar o navio, fazer baixar no mundo os deuses ex machina salvadores da porra toda.

Mas é claro que esse poder está além da música e da poesia — ao menos no mundo da não ficção.

Entre a metáfora e a hipérbole romântica, não sei quantos graus de realidade podem caber na minha alucinação, mas sei que há um cenário que me parece ainda mais insuportável que o de tocar este violino:

Poderia haver um naufrágio iminente sem violinista algum capaz de tocá-lo.

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Resenha – Estranha Bahia

outubro, 31 - 2019

Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.

Foi com esse conselho que Liev Tolstói apaziguou os artistas que se sentiam deslocados em relação à indústria cultural dominante em seu tempo em razão de serem originários de localidades fora dos principais polos culturais, falarem uma língua diversa, possuírem diferentes visões de mundo. Ou, para colocar em termos mais rasos: segundo Tolstói não existe razão nisso que chamamos de “complexo de vira-lata”, pois o que nos torna universais não é uma língua ou um endereço no GPS, mas a experiência humana que somos capazes de transmitir por meio de nossas histórias, peculiares como podem ser.

Dito isso, agora me sinto autorizada a discordar — mas só um pouquinho.

Porque por trás da experiência universal há também um pouco de interesse turístico, e enquanto folheio as páginas de Anna Kariênina, A Morte de Ivan Ilitch e Felicidade Conjugal — meus favoritos de Tolstói — e sofro com seus protagonistas, eu também quero passear pela Rússia de fins de século XIX, apreciar seus palácios, sentir seu inverno, observar os vestidos da nobreza russa enquanto ela se reúne em salões chiques e conversa em francês; quero descobrir a vida que corre em vilarejos populares; quero saber o que aquele mundo sente e cisma e acha e pensa.

A Rússia de Tolstói é exótica para mim, assim como o Brasil devia ser a Tolstói uma terra tão distante que nem sei se o escritor sequer chegou a mencioná-lo. Mas ele — russo do século XIX — e eu — brasileira do século XXI — deixamos de ser alienígenas um ao outro quando embarco em sua narrativa, e a experiência que ele me proporciona é como um turismo feito por dentro — vejo suas paisagens na janela da imaginação, e por empatia incorporo cada um de seus personagens: passo eu mesma a ser russa enquanto rolo as páginas, e a Rússia de Tolstói deixa de ser um território estrangeiro.

Tornando-me russa sem sê-lo, aprendo que a Rússia também é minha de alguma forma. E entendo que minha imperfeição forasteira é um expediente para que eu aprenda um infinito sobre aquela parte do mundo. Sim, posso também me aventurar a escrevê-la, ainda que imperfeitamente, pois se há algo apaixonante na literatura é o seu poder de derreter fronteiras — geográficas, temporais, linguísticas, metafísicas, de vivência.

Faço essa digressão à guisa de introdução para uma resenha literária, pois creio que o livro que tenho em mãos para resenhar — Estranha Bahia — merece esta abertura, pois encarna essa ideia.

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Organizada por Ricardo Santos, Rochett Tavares e Alec Silva, Estranha Bahia é uma antologia de noveletas fantásticas passadas em cenários baianos, e o único ponto que reúne seus sete autores é o fato de escreverem em língua portuguesa: entre eles há baianos de nascimento, baianos radicados e baianos por alteridade. Debruçada sobre a edição ilustrada e diagramada com esmero, vejo cenas da Bahia por lentes fantásticas e sob uma variedade de ângulos e distâncias. Nessa múltipla Bahia há mistério. Há misticismo. Há o risco e o riso. E a aventura.

O mistério
Está no cenário que desdobra a ficção científica de Ricardo Santos na noveleta Raças: uma missão investigativa por dentro de espaços reservados da elite soteropolitana na tentativa de desvendar relações escusas entre a humanidade e a espécie humanoide-alienígena dos eladianos, produzindo uma metáfora para o jogo de relações complicadas e desiguais entre os estratos sociais da cidade de Salvador.

O misticismo
E o medo, por sua vez, abunda na narrativa de Isabelle Neves, Canudos XXI, que narra a perseguição, a fuga e os embates de Bento com a Morte, que produz uma macabra colheita de seus entes queridos em um cenário árido e pitoresco, pano de fundo que reverbera a histórica (e lendária) Canudos de Antônio Conselheiro.

Assim como em Joel das Almas, conto de Evelyn Postali, que elabora o perfil de um exorcista que enfrenta demônios não com cruz, mas com seu arsenal de conhecimentos e filosofias sincréticos do universo mitológico baiano, mesclando cristianismo, candomblé e história.

O misticismo baiano também dá o tom da noveleta O Profeta do 666, de Tarcísio J. da Silva, no qual um contemporâneo João Evangelista, escritor, atravessa uma impressionante e perturbadora série de visões enquanto enfurnado no quartinho número 666 de uma pensão, em uma instigante paródia bíblica.

O risco
Se dá em sequência, com o mais diferente dos textos da antologia, de Alexandre Ctulhu, autor de Enterrados a Respirar, que apresenta uma engenhosa narrativa de traição e vingança passada em Portugal, porém com desdobramentos macabros no cenário da Bahia.

O riso
Escapa a cada minuto da leitura deste que é o conto mais divertido da antologia: Em Busca da Disgraça da Pedra Azul, de Cristiane Schwinden, que leva ao pé da letra a proposta de explorar o que há de mais típico na cidade de Salvador. Nessa história, o fantasma de um ex-escravo aparece para a garota Filipa, imbuindo-a com a missão de encontrar a pedra azul, um artefato poderoso, antes que um mago a encontre e transforme a humanidade inteira em zumbis. Com seus dois amigos, a garota embarca em uma aventura rocambolesca pelos cenários mais marcantes da cidade de Salvador, com direito a amostras generosas de expressões e gírias locais.

A aventura
É longa e instigante na noveleta que encerra a antologia — Quibungo, de Rochett Tavares — que conta a trajetória do africano Olaweraju, desde as complicações que o levaram a ser capturado em África, sequestrado através do mar e vendido para os escravocratas do Brasil colonial. Em fuga, ele embarca em uma saga perigosa junto a um companheiro improvável encontrado pelo caminho: o guerreiro maia Aapo. Juntos, eles irão ao encontro de um dos monstros mais temidos do folclore baiano: o quibungo, ou o rei de todos eles.

Na sua somatória, Estranha Bahia é resultado de uma das propostas mais interessantes da literatura fantástica brasileira, que trouxe à luz uma safra multivariada de visões possíveis sobre um universo regional — a Bahia, por excelência, para muito além da ficção de Jorge Amado e da música de Dorival Caymmi, para além do carnaval e seus clichês, ou quaisquer tentativas de lhe impor um rótulo. Meu bicho teórico interior ousa especular que a literatura fantástica brasileira começa a explorar, doravante, as possibilidades legadas pela tradição da literatura regionalista do século XX, mas esse é assunto para outro passeio. Encerro com meu parecer viajante de que a Bahia — lugar que tenho muito visitado com livros, voos e pensamentos — nada tem de pequena e simples, e que do mirante dessa aldeia se vê o mundo.

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André Matos: Cada fã tem sua história — e eu, minha rapsódia

julho, 8 - 2019

Às vezes me espanta como os momentos que mais me levaram a escrever nos últimos anos foram aqueles de perda e de luto. Foram-se amigos, foram-se referências, e nesses instantes me sinto impelida a falar enquanto as memórias e as emoções estão transbordando.

Posso não demonstrar muito, mas sou apegada a pessoas queridas e às coisas que elas fizeram e me tocaram de alguma forma. Meus lutos são demorados, passo bastante tempo homenageando os mortos em pensamentos, projetos e lembranças.

Faz um mês que se foi uma das referências que tiveram impacto nos meus tempos de formação e que, por isso mesmo, entrou inevitavelmente para o panteão das minhas musas – ele, uma das minhas poucas musas do gênero masculino.

Porque, caramba, André Matos, que composições, que voz, que presença de palco, que agudos fulminantes eram aqueles? E ainda falava um milhão de línguas, era culto em um nível estelar, vegetariano, low profile e gente boníssima.

A parte gente boníssima eu confirmei em primeira mão — ele no papel de ídolo, eu no papel de fã, aquela cena que se repete em todos os after shows universo afora. Mas foi curioso.

Era o ano de 2001, eu estudava num cursinho pré-vestibular do Tatuapé, e no caminho de poucos quarteirões entre minha casa e o cursinho situava-se a André Music Center, uma loja de discos dedicada ao rock e ao metal (e que não tinha nenhuma relação com o André Matos, eram Andrés diferentes), bem ali onde eu peregrinava todos os dias. Foi nessa loja que gastei um tanto do meu magro dinheiro adquirindo relíquias adoradas — como CDs do Enigma (que é outro dos meus paraísos musicais), os CDs do Angra, que comprei de segunda mão, e até o CD do Virgo, que adquiri numa barganha desesperada com meus CDs velhos.

Eis que um dia, passando diante da André Music Center, vi um cartaz anunciando a venda de ingressos para um “show de despedida” do Angra, ou coisa assim, no galpão da Led Slay, que era no meu bairro e já nem existe mais. A questão era que o Angra já havia sofrido o divórcio da formação original, eu era nova demais para ir a shows, menor de idade, não tinha nem dinheiro, nem a liberdade, nem a companhia para tanto. Era uma decepção da vida minha banda favorita ter se separado sem que eu pudesse sequer tê-la visto se apresentar. Aquele “show de despedida”, que seria apenas com os membros que mais tarde formariam o Shaman, era uma oportunidade única.

Tanto pedi que minha mãe não teve como dizer não. Mas sozinha eu não iria, então ela foi comigo. E o galpão da Led Slay testemunhou essa cena memorável: uma senhorinha de óculos e blusa de lã a passar a noite de braços cruzados, vigiando a filha, as duas cercadas por metaleiros cabeludos batendo cabeça e tocando guitarras imaginárias por todos os lados.

Nothing to Say, Carry On, Make Believe, Living for the Night, sei lá mais quantos hinos adorados eu pude curtir como se não houvesse amanhã — porque, de certo modo, não havia amanhã mesmo, a fase lendária da banda havia acabado. E quando eu soube que no fim do show era possível se aproximar dos músicos, condenei minha mãe a esperar comigo até as cinco da manhã… e dava pra tocar umas três mil Carolina IV nessas horas de espera.

Na saída do show, já com o dia raiando na avenida Celso Garcia, me aproximei meio sem jeito daquele cabeludo de óculos a tirar fotos com os fãs, eu mesma não tinha nada a pedir, nem foto nem autógrafo, só quis mesmo lhe dar um abraço e desejar sorte com a banda nova, o Shaman.

E esses foram meus poucos segundos na órbita do André Matos.

Eu só o veria novamente mais uma vez, em 2003, no show do Shaman que foi eternizado com o DVD RituaLive. Dessa feita, fui com um amigo e paguei  exatos dez reais por um lugar no Everest mais distante da arquibancada do Credicard Hall, onde o oxigênio era rarefeito mas dava para ter uma visão panorâmica de tudo. E se tem momentos que marcaram minha memória, foram: 1) o Credicard Hall inteiro num êxtase monumental durante a performance de Fairy Tale; 2) André Matos duelando agudos consigo mesmo ao microfone; 3) André Matos parando o show para imitar pastor evangélico: “IRMÃÃÃOOOS, ALELUIA!…”(pois é, eu vivi pra ver isso).

Ainda preciso rever esse show, hoje disponível no Youtube. Ainda preciso parar para ouvir com atenção os álbuns do Shaman, porque o fato é que o Shaman nunca conseguiu capturar minha atenção da mesma forma que aquela formação brilhante do Angra, que deixou como legado Angel’s Cry, Holy Land, Fireworks — três dos melhores álbuns de heavy metal que este mundo já conheceu, não só por serem bons, mas por serem únicos.

Porque havia ali, naquelas músicas, naquela banda, naquela fase, um equilíbrio, uma pegada, um casamento raro da agressividade do metal com a suavidade da música clássica, além das influências da música brasileira, além dos arranjos sofisticadíssimos — e é claro que a união desses elementos não levaria a lugar nenhum se as composições não fossem geniais, se as execuções não fossem magníficas, se os álbuns não tivessem sido produzidos com esmero, se a banda e tudo o que ela era em som e performance não hipnotizasse desde o primeiro acorde.

Eu gostava de Angra como nunca gostei de Iron Maiden. Como jamais gostarei.

E é prazeroso e engraçado saber que, de todos os lugares do mundo, essa banda é da minha cidade, seus integrantes nasceram, cresceram, se reuniram aqui, viajaram o mundo e voltaram ou continuaram conectados com São Paulo. Falamos a mesma língua, transitamos pelas mesmas ruas, partilhamos a mesma cultura. O coração nativista se aquece.

Mas eu falava do Shaman, e podia falar o mesmo do Angra II (trocadilho nuclear não intencional) — aconteceu com essas bandas-filhas do Angra original algo semelhante ao que aconteceu com outra banda das minhas adorações: o Nightwish. O Nightwish era um arroubo, um desbunde de maravilhas do heavy metal sinfônico, e a justificativa para grande parte dessas qualidades se encontrava em duas cabeças: a do compositor extremamente genial e a da vocalista soprano lírica de voz abismante. Quando a banda prescindiu de uma dessas cabeças, despencou patamares, talvez irrecuperáveis para ambos os lados da rachadura. Porque, como se sabe, dentre os músicos de uma banda ninguém é insubstituível — mas nas leis que regem os corações dos fãs e as vibrações lá das esferas musicais, às vezes, é.

Minha intenção com isso não é dizer que as bandas não deveriam se separar e que músicos que não se aturam mais deveriam conviver até o final dos tempos. Tampouco estou dizendo que o que produziram depois desses cismas seja irrelevante. Na real, essa é só minha tentativa de justificar porque, lá pelos idos de 2003, parei de acompanhar de perto a carreira do André Matos no Shaman, assim como deixei de acompanhar o Angra II, e mesmo o Nightwish pós-Tarja e a Tarja solo. Porque, para mim, a soma das partes já não fazia uma exponencial (sou de humanas, desculpe). E porque, de todas essas bandas, eu ouvi só umas poucas músicas inéditas que estouraram desde então.

E aí a agulha da vitrola dá um salto para 2019, dia 8 de junho, quando morreu André Matos e eu me senti como quem leva um raio na testa enquanto está atravessando a avenida. Não apenas porque dói saber que a morte chega para os seus artistas favoritos (assim como há de chegar fatalmente a você), mas porque me dei conta, num súbito, que apesar de ele ser uma referência importante, 15 anos haviam nos atravessado sem que eu soubesse o que mais ele produziu, por onde andou.

No descarrilar dessas últimas semanas tenho me lançado nessa arqueologia. Reouvir os CDs antigos. Assistir a fragmentos de shows, entrevistas. Descobrir o que perdi enquanto estava ocupada demais vivendo.

Eu nem sabia, por exemplo, que o Shaman havia se separado em 2006 e o André Matos havia fundado uma banda solo, com a qual produziu três álbuns.

E não sabia que ele reunira o Viper no início desta década. E que andava em reunião com o Shaman desde ano passado. E começava-se a cogitar agora uma reunião da primeira formação do Angra!

E que ele andava se apresentando em concertos solo — André Matos: Piano & Voz — pelos SESCs do mundo. (Me responda, Apolo, como foi que perdi isso?)

Ao mesmo tempo em que sigo na arqueologia, e ela me faz emagrecer quilos na esteira de tanto correr heavy metal, quero gritar pro mundo a existência de músicas muito além dos hits, muito além das mais lembradas.

Rainy Nights e Reaching Horizons, os singles baladinhas do Angra, sublimes. Stand Away e Metal Icarus, com agudos de furar o céu. A dramática Paradise. The Shaman, que nunca vi o Angra tocar em lugar nenhum. Mystery Machine e seus riffs de guitarra intrincados — que melodia mais desóbvia, rápida e rocambolesca, SE-NHOR, como eu não tinha adorado isso antes?

Virgo — o projeto do André Matos com o produtor musical Sascha Paeth — esse álbum merecia demais ter subido aos palcos ao menos uma vez, e músicas como To Be, No Need to Have an Answer, Rivers e I Want You To Know mereciam ser conhecidas, andar pelo mundo. Pelas rádios.

Das participações especiais do André:

Bem-Aventurados, com o Sagrado Coração da Terra. Letra fofa, adoravelmente meio brega. Uma rara chance de ouvi-lo cantar em português (quisera que tivesse feito isso mais vezes).

I Believe Again, com a banda italiana Time Machine, da qual eu nunca soube nada, a não ser o fato de que produziu essa delicadeza de música com o vocal do André, pequena joia.

Da André Matos banda ainda estou por desbravar os álbuns, mas descobri com muita surpresa que gravaram um cover de Fake Plastic Trees,do Radiohead — sabe? Fake Plastic Trees? Essa música que vai subindo aos poucos, num arrepio progressivo, até estrangular a alma lá no ápice? Então, ficou muito boa e diferente na voz do André e por hora é o que tem tocado em repeat nos meus áudios.

E se tem uma coisa que eu diria para o André Matos a esta altura é:

CARALHO, você era FODA, e eu não uso palavrões em vão.

A música é uma comunhão de almas, poucos são os gênios que fiam e tecem essa conexão emocional com tamanha destreza e intensidade, e blá blá blá, mas repare:

Não existe uma conclusão para essa sinfonia que tropeça e se arrasta sem desfecho desta cidade para o mundo; ficamos órfãos dessa arte com uma assinatura tão particular, felizes com o legado, mas felizes e de coração partido, desvairados, cantando como cantaremos ainda décadas — talvez séculos — à frente Carry On: com nossas guitarras imaginárias, buscando no céu as notas que nossos agudos jamais serão capazes de alcançar.

Porque você era foda.

Rest in plenitude.

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Artigo publicado também no Whiplash.