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Leituras – Janeiro/2009

fevereiro, 1 - 2009

Planeta de Exílio – Ursula K. Le Guin

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O primeiro romance da série Ekumen (ou Ciclo Hainish, como preferir), também o último que me faltava ler. A história se passa no planeta Werel, ou Alterra, onde vivem as tribos nativas num estágio primitivo da civilização,  e também uma colônia de humanos terrestres (os exilados), que foram literalmente esquecidos no planeta, deixados para trás por seus conterrâneos. Apesar de ambas raças serem descendentes da estirpe original de Hain, são dois tipos humanos distantes o suficiente para não poderem gerar híbridos entre si. Apesar disso, a alterrana Rolery se envolve com o terráqueo Jakob Agat, e juntos eles testemunham uma guerra sangrenta que mudará para sempre as relações entre as tribos de Alterra. Um detalhe bem sacado da obra é que em Alterra, graças ao período de translação longuíssimo do planeta, com duração média de uma vida humana, as tribos são estratificadas em gerações com faixas etárias bem definidas. Imagine que durante toda a sua vida um alterrano viverá um único e quase interminável inverno, verá uma primavera florescer por vinte anos e um verão terrível que transformará parte do planeta em deserto. A protagonista, Rolery, é uma garota temporã, nascida fora da época, que quando vier o período dos casamentos estará velha demais para conceber, e em razão disso torna-se uma espécie de pária de sua tribo.

Comparado aos outros livros da série, eu diria que Planeta de Exílio é um das mais fracas obras da Ursula K. Le Guin. Sendo que esse “fraco”, para os padrões leguinianos, significa “razoavelmente bom”.

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Lavoura Arcaica – Raduan Nassar

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Dele eu não sabia quase nada, além do fato de que marcou uma geração. Acho que entendi o porquê. Lavoura Arcaica é uma dessas experiências de linguagem bem sucedidas que germinam quando um autor novo chuta o balde e se desprende de todos os convencionalismos da “boa literatura”. A sensação é de um fluxo de consciência em permanente delírio, uma ciranda vertiginosa com toada regionalista. Um livro indiscutivelmente bonito e criativo.

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Mão Dupla – Christian David

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O Christian David é um jovem e talentoso autor gaúcho que, pelo que pude constatar, é uma fera da literatura infanto-juvenil. Seu livro, Mão Dupla, aborda um tema bastante delicado: o que dizer para uma criança que perde um pedaço imprescindível de si – um braço, uma perna? E se vê de um dia para o outro mutilada, com suas expectativas de felicidade e sucesso sabotadas frente a um mundo competitivo que não há de ser complacente com a deficiência? Esse é o drama que acomete o menino Tiago, que depois de um acidente vê sua vida radicalmente mudada e até seus prazeres mais simples, como jogar videogame, se tornam impossíveis.  Uma barra, sem dúvidas, mas com o tempo ele descobre que nem tudo está perdido.

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A Mulher Independente – Simone de Beauvoir

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A Mulher Independente é um excerto do livro O Segundo Sexo. De certo modo, foi a releitura de uma obra que havia me dado muito o que pensar.  Partindo da pergunta: “o que é uma mulher?”, Simone de Beauvoir disserta sobre a condição feminina e sua longa história de submissão, pontuando suas possíveis razões e tecendo paralelos com outros conflitos de grupo, como o racismo e o antissemitismo. Ela discute a crucial conquista que a mulher, tradicionalmente tratada como objeto, tem empreendido ao passar a se posicionar como sujeito, abdicando de seu status passivo e adquirindo um papel ativo ao aceitar responsabilidades e tomar nas próprias mãos os rumos da sua vida.

Foi uma obra que “veio a calhar” com a fase final do meu mestrado, que é um estudo sobre a homofobia na população brasileira. Chama minha atenção o fato de que as culturas mais homofóbicas costumam ser igualmente muito sexistas, parece haver uma correlação direta entre os conflitos de gênero nas culturas tradicionalmente patriarcais, possivelmente em virtude do status social ser fortemente vinculado a um ideal de masculinadade. Enfim, não vou me alongar…

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Cassandra – Christa Wolf

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Livro BÁRBARO!

Fui fuçar uma livraria aqui perto de casa (um dos meus passatempos preferidos), quando, desinteressada e quase acidentalmente, desencavei este livro de uma prateleira. Achei a capa simpática. Levava o nome de uma personagem dos meus contos, um nome cuja origem eu me cobrava conhecer. Levei sem titubear, mas também sem grandes expectativas. Eu mal sabia…

O livro é dividido em duas partes.

A primeira é um monólogo íntimo de Cassandra. Princesa de Tróia, filha do rei Príamo e da rainha Hécuba. Sacerdotisa consagrada ao templo de Apolo, cai nas graças do deus, que lhe dá o dom da profecia. Contudo, sem correspondê-lo, é amaldiçoada: ninguém jamais haveria de acreditar em suas palavras. É quando Páris, seu irmão renegado, retorna e inventa uma linda história – o rapto de Helena -, uma farsa que acaba  comprando uma danada briga com os gregos; irrompe assim a Guerra de Tróia. O final, todos já conhecem: a destruição da cidade. Parece óbvio, Cassandra avisa, mas ninguém a quer escutar. Mandam prender essa estragaprazeres que só prevê desgraças em um calabouço. A guerra é perdida. Cassandra, feita prisioneira de Clitemnestra, conhece o fim que a aguarda, e nas horas que precedem o seu assassinato repassa as cenas embaralhadas de toda a sua vida.

É uma narrativa maravilhosamente bem escrita. Extraordinária!

Na segunda parte, Christa Wolf fala sobre uma viagem à Grécia e de como a figura de Cassandra se apoderou de seus pensamentos. Ao longo de quatro conferências a autora conta diversas facetas de sua vida pessoal e literária. Christa é alemã e foi durante muitos anos filiada ao partido socialista – para ser mais específica: vivendo na Alemanha ocidental durante a Guerra Fria! Enquanto escrevia o livro, na década de 80, o mundo estava sob a ameaça de uma guerra nuclear; ela retratou em nuances esses meses tensos, e, colocando-se como uma Cassandra moderna, previu a tragédia que parecia iminente (felizmente estava errada). Christa também tece uma análise da condição feminina nos mitos e na história grega. Descreve como a religião, inicialmente matriarcal e baseada no culto à deusa-mãe, foi aos poucos sendo masculinizada e hierarquizada, catalisando a transição da figura feminina de respeitável (mãe) a temida (bruxa).  Interessante também o contraste entre a condição social da mulher na civilização minóica e a conhecida submissão das “mulheres de Atenas”. Cassandra é, no final das contas, uma das raras vozes femininas que falam por si próprias na lírica grega. Ainda assim, na voz de terceiros.

Ao cabo de tudo isso, ficou minha indignação pela referência nunca recomendada, por jamais ter ouvido cogitarem o nome de Christa Wolf – essa escritora que me deixou totalmente rendida. Um achado acidental bastante feliz.

Se é que o acaso existe.

12 comentários

  1. Agradeço pelas sugestões, me interessei por todas. A descrição desse planeta Alterra me impressionou, coisa surreal, e Cassandra parece realmente um ótimo livro.
    Um dia os lerei. :p


  2. Ursula… Ursula… ainda preciso ler um livro dela. É um pecado eu ainda não ter conhecido essa vovó…


  3. Pô, você tá lendo mais que eu hehe.
    Uma coisa que costumo me “auto-cobrar” é ler mais esses livros relacionados às mulheres, como Beauvoir… e poxa, Cassandra é tão bom assim?


  4. Olá Cris,
    eu li o Planeta do Exílio logo após “A Cidade das Ilusões”, em seguida eu li “O Mundo de Rocannon”. Se você ler na seqüência, vai ver como a Ursula vai ganhando firmeza como contadora de estórias mais longas. Talvez por que você tenha começado a ler pelas obras mais maduras e trabalhadas dela com “A Mão Esquerda da Escuridão” tenha a impressão que os livros do ciclo Hainish seja mais fracos que os que vieram a seguir, mas para um moleque cheio de encucações filosóficas de um quarto de século atrás, esse livro ( e toda a série por sinal) foi excelente. 🙂


  5. Jorge, considerando a ordem cronológica dos lançamentos, a evolução da narrativa da Ursula é escancarada. Da trilogia Worlds of Exile and Ilusion ela dá um salto tremendo para A Mão Esquerda da Escuridão e Os Despossuídos.
    Quando penso por esse lado, acho uma ótima ideia começar uma carreira de escritor por “sagas menores”. Aí fica a pergunta: será que ela já tinha a ideia da Mão Esquerda quando começou a escrever os primeiros romances Hainish e resolveu deixar na gaveta para o amadurecer primeiro o estilo?


  6. O mundo coberto de neve já está presente no “Planeta do Exílio”. Personagens peregrinos que acabam descobrindo grandes verdades sobre si próprios estão presentes em “A Cidade das Ilusões”… parece que a Ursula foi trabalhando aos pouquinhos estes temas, experimentou nos dois romances e depois atacou o “A Mão Esquerda da Escuridão”… pode ter sido assim ou não… só a Tia UKL pra saber… Humm, o que será que ela pensaria se recebesse outra vez uma correspondência daquela jovem fã ardorosa do distante e exótico Brazil ?..
    Nossa, tantas questões num post tão pequeno :))


  7. Lavoura Arcaica.
    Grande livro, grande filme!
    Uma dica: Felisberto Hernández, O cavalo perdido.
    Sensacional. Li faz tempo e ainda ecoa. Dá uma geral no google/wiki que vale a pena. Bjs!


  8. Da Le Guin eu só li um livro dela, “Os Despossuídos”. Quero muito ler todo o Ciclo Hainish, pela ordem, da forma como a Christie certa vez listou lá na comunidade de ficção científica do Orkut.

    Será que viverei para lê-lo por completo?


  9. […] Dias da Peste*** – Fábio Fernandes Anacrônicas – Ana Cristina Rodrigues Lavoura Arcaica – Raduan Nassar Água Viva ***- Clarice Lispector A Hora da Estrela *** – Clarice Lispector […]


  10. Ótimas leituras. Infelizmente, ou felizmente dependendo do ponto de vista, li apenas Cassandra.

    Por que felizmente? Porque concordo plenamente com o que comentas. É realmente um livro bárbaro. Tive a oportunidade de lê-lo em 2005, depois de assistir dezenas de vezes um espetáculo teatral baseado no livro. O espetáculo em questão é “Kassandra in process” (primeira versão do grupo, com 1 hora de duração) e posteriormente “Aos que virão de pois de nós Kassandra in process” (com três horas de duração). Eu fiquei com muita vontade de ler e pesquise na biblioteca da faculdade que cursava na época e fiquei muito feliz e surpresa por encontrá-lo, visto que até hoje nunca o vi para vender em nenhuma loja ou sebo. E lendo seu post fiquei com uma vontade tremenda de relê-lo e já vou peregrinar pelos sebos de Porto Alegre para ver se encontro.

    Beijos e boas novas leituras.


    • Oi Daniela!

      Você é a primeira pessoa que conheço que leu Cassandra! rs
      Como eu disse na resenha, peguei o livro por acaso na estante da livraria, comprei e foi uma surpresa! Já me inspirei na Christa Wolf para escrever, uma das minhas mestras.

      Beijos!


  11. Você sabe dizer se tem o livro Planeta do Exílio em pdf? Estou louca atrás dele!



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