Posts Tagged ‘George Orwell’

h1

2001, uma odisseia, uma viagem

abril, 19 - 2014

Publico aqui uma breve monografia que fiz como trabalho para a disciplina de Design Editorial, do curso de editoração da ECA-USP. A proposta era discutir o conceito e a materialidade nas publicações. Escolhi um projeto gráfico que me chamou bastante atenção: a nova publicação que a editora Aleph fez de 2001: Uma Odisseia no Espaço, que é também uma dos meus romances preferidos do Arthur C. Clarke. Creio que esse exercício pode ser encarado como uma resenha diferente, centrada no nível semântico e do design. Ou talvez só mais uma viagem minha mesmo.

* * *

2001: Uma Odisseia no Espaço – A repaginação de um clássico

Em seu prefácio para a edição mais recente de A Mão Esquerda da Escuridão, Ursula K. Le Guin disserta: “o objetivo do experimento mental (…) não é prever o futuro – mas sim descrever a realidade, o mundo atual”, em outras palavras: escrever ficção científica é um exercício extrapolativo sobre o aqui e o agora, não é futurologia. Assim é que as datas terminais citadas nas opera magna dos escritores de ficção científica estão fadadas a serem atropeladas pela linha do tempo sem que a metáfora de seus universos se perca. Depreendemos que 1984 de George Orwell continua atual, apesar do ano de 1984 ter-se ido do calendário há três décadas, e, do mesmo modo, passamos pelo ano de 2001 sem termos vivido uma “odisseia no espaço” (aliás, continuamos muito defasados na tecnologia astronáutica para sonhar com as viagens narradas na obra de Clarke). O livro 1984 de George Orwell foi escrito no ano de 1948, sendo que o autor escolheu esse título por guardar relação de anagrama com seu próprio tempo, projetando o universo ficcional de 1984 para um não lugar – em grego, utopos, raiz etimológica de “utopia”, – que por não ser idealizado como a Utopia de Thomas More, tornou-se o não lugar problemático: uma distopia. A data futura de 1984 não guardava, portanto, relação com o futuro cronológico, mas construía a metáfora de uma realidade alternativa e plausível, um campo para experimentar e dissecar as mazelas presentes no zeitgeist do 1948 em que Orwell viveu.

O livro 2001: Uma Odisseia no Espaço de Arthur C. Clarke é sui generis nessa proposta. Enquanto obra literária foi precedida pelo filme de 1968 do diretor Stanley Kubrick, do qual Clarke foi o roteirista. Concebida primeiramente para o cinema, tinha o objetivo de contar uma história que retratasse um futuro plausível. Não era um exercício de adivinhação sobre como o ano de 2001 seria, mas um exercício extrapolativo sobre como a revolução tecnológica pode transformar o cotidiano da humanidade, e, nesses termos, ele projeta o olhar para um futuro cronológico em que os anseios por avanço técnico foram traduzidos em conquistas. O 2001 de Clarke é o não lugar (utopia) do maravilhamento científico, e no seu esforço havia um significado futurológico verdadeiro: de que nos anos vindouros estaríamos mais imersos nesse maravilhamento e mais mudados pela revolução técnica e científica. Talvez possamos afirmar que a metáfora de 2001 seja menos metafórica do que a de 1984.

Não obstante, de certo modo, podemos dizer que essas obras encerram um “futuro” que o passado pretendia, e chamar suas estéticas de paleofuturismo. Enquanto metáforas literárias, 1984 e 2001: Uma Odisseia no Espaço tornaram-se clássicos.

Faço esta longa introdução para dissertar sobre a missão editorial de manter, na forma, a atualidade de obras que, em conteúdo, serão sempre atuais. Fazendo um trocadilho com o título do livro de Janet H. Murray: nos novos tempos consumiremos Hamlet no holodeck. Como dar cara nova às obras eternas?

Elegi para objeto deste breve exame um desses dois clássicos da ficção científica, o livro 2001: Uma Odisseia no Espaço, que ganhou nova edição no final do ano de 2013 por uma editora que se demonstra ciosa do conceito e da materialidade dos seus produtos, a editora Aleph.

Imagem

Em formato 16cm x 23cm, o livro é apresentado dentro de uma luva: uma caixa inteiramente preta, com um “2001” grafado em fonte branca ocupando toda a largura, o restante do título “Uma Odisseia no Espaço” em fonte bastonada e fina, muito discretamente inserido abaixo do “2001”. Os dois terços inferiores são ocupados por um círculo de diâmetro idêntico à largura do “2001”, criando um conjunto proporcional e estável. O círculo vermelho e laranja, destacado do fundo preto, guarda analogia com um sol no espaço. Ilustra, na verdade, o olho do computador HAL 9000, que apesar de ser “coisa”, é um personagem ativo do enredo de 2001. O filme de Stanley Kubrick projeta uma visão interessante desse personagem: HAL 9000 tem seu banco de dados e central de processamento armazenados em segurança em uma sala da nave em viagem pelo espaço interplanetário. HAL 9000 é o controle da nave, seus “tentáculos” invisíveis controlam todo o microcosmo onde vivem os astronautas humanos. Sem algo que se possa individualizar como um corpo, a figura de HAL 9000 foi esquematizada por um olho, mais especificamente, por uma lâmpada vermelha posicionada na parede, protegida por um pequeno domo de vidro sobre o qual se refletem imagens do espaço interno da nave. Esse olho converge atenções quando HAL 9000 se coloca – ele entra no foco da câmera quando sua voz masculina, suave e monótona fala. O círculo mais a luminosidade vermelha atuam como espontâneos atratores de atenção, e essa foi a imagem escolhida para a luva que apresenta a nova edição da obra. A despeito das cores quentes, há de se concordar que o olho inumano de HAL 9000 projeta um olhar frio, de cíclope maquínico, desprovido de uma expressão facial que transpareça emoções e intenções. A ilegibilidade da expressão de HAL 9000 encerra a sua incógnita, e o seu perigo.

Dentro da luva é guardado o livro propriamente dito, um único volume em brochura, com um detalhe marcante: inteiramente preto. Capa, contracapa, lombada e até o corte das folhas; inteiramente tingidos de preto. Em sua forma, esse objeto retangular mimetiza outro personagem não humano de 2001, o monolito. Não um personagem qualquer, o monolito é um objeto inteligente que surge na primeira cena do filme de Stanley Kubrick, aparecendo para os ancestrais dos homo sapiens em um remoto paleolítico. A intervenção do monolito se dá por um mecanismo além do entendimento, mas sabemos que de algum modo ele catalisa a evolução da espécie humana. Permanece como um observador misterioso a vigiar os passos da humanidade em sua saga exploratória pelo espaço sideral. A natureza do monolito não é revelada completamente no filme de Kubrick nem no romance de Clarke. Acreditam que seja uma sonda alienígena, embora isso diga pouco. Embora sua intervenção não seja maléfica, tampouco é compreensível; um artefato que (se supõe) venha de uma civilização tão avançada deve agir segundo uma moralidade própria e que nada tem a ver com a moral humana. De modo parecido ao que ocorre com HAL 9000, a ilegibilidade das intenções do monolito faz inspirar por ele um temor sagrado.

O monolito guarda a ideia de uma caixa-preta: algo que encerra um mistério. Quando o livro-monolito é retirado da luva, o leitor tem a sensação de um mistério prestes a se revelar. O encontro com o livro guarda a simbologia de conduzir o leitor – assim como o monolito conduz os australopitecos do filme de Kubrick – a um evento transformador: o encontro com o “passado” e o “futuro” da humanidade em um não lugar, o encontro de outros mundos. Dessa forma, o livro-monolito torna-se um mediador entre o leitor e as possibilidades cósmicas.

Imagem

 

Referências Bibliográficas
CLARKE, Arthur C.. 2001: Uma Odisseia no Espaço. São Paulo, Editora Aleph, 2013.
LE GUIN, Ursula K.. A Mão Esquerda da Escuridão. São Paulo, Editora Aleph, 2008.
ORWELL, George. 1984. New York, Penguin, 1977.

Referência Cinematográfica
2001: Uma Odisseia no Espaço. Direção: Stanley Kubrick [S.I.] Warner Home, 1968. 1 DVD (141 min).

 

h1

Realidade & Ficção

junho, 13 - 2010

Como prometi que não falaria sobre política, vou falar sobre ficção e também realidade. Como elas se tocam. Como a ficção descreve a realidade, a realidade confirma a ficção e até mesmo a supera. Para começar, faço-lhe uma pergunta:

Você sabe qual é a semelhança entre Kim Jong-il (o “presidente” da Coréia do Norte) e George Orwell?
Pense, pense…

A semelhança é o talento de ambos para fazer distopia.

Caso você nunca tenha ouvido falar em distopia, transcrevo uma definição dada no artigo “Ficção Científica, o Universo e Tudo Mais…“, publicado neste blog em 2008:

Um gênero inteiro dedicado a tratar de utopias que saíram pela culatra. Ficção ou nem tão ficção assim, as distopias exploram meios de opressão institucionalizada, cujos padrões se repetem interminavelmente na história da humanidade. É provável que estejam entre as obras mais conhecidas da ficção científica (raramente assumidas como FC): Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley), 1984 (George Orwell), Farenheit 451 (Ray Bradbury), Laranja Mecânica (Anthony Burgess), O Caçador de Andróides (ou Blade Runner, Philip K. Dick) e The Handmaid’s Tale (Margaret Atwood). No cinema, bons exemplos são os filmes Gattaca, Filhos da Esperança, Aeon Flux, além das adaptações das obras já citadas. A receita da boa distopia é angustiar o leitor situando-o numa atmosfera opressiva, de regras intrincadas, leis injustas, estreita vigilância, desesperança e desilusão.

Talvez você já tenha lido algumas dessas obras supracitadas. Se não leu, recomendo fortemente que leia pelo menos 1984 e então você entenderá o que quero dizer a seguir.

Dias atrás, o New York Times publicou uma reportagem sobre a atual situação interna da Coréia do Norte. Entrevistaram 8 norte coreanos fugitivos, que descreveram um panorama aterrador, porém consistente, sobre o que anda se passando dentro do país (feudo?) de Kim Jong-il.

Quem for assinante UOL pode ler a reportagem em português clicando aqui. Ou, em todo caso, pode ler em inglês na página do NY Times.

Se prestar atenção, verá que as semelhanças entre 1984 e Coréia do Norte são incríveis, como se o ditador estivesse se aconselhando com o escritor, ou como se estivesse incumbido de realizar a profecia de Orwell. Mas eu diria que Kim Jong-il é mais talentoso, pois foi além e construiu seu próprio reino de ficção com os tijolos da realidade, e atualmente submete 24 milhões de pessoas a uma legítima distopia, talvez mais competente que o mundo dos pesadelos de Winston Smith.

George Orwell capturou tão bem a mentalidade dos estadistas totalitários, seu comportamento, seus métodos de arrebanhamento, suas ferramentas de controle e sujeição, que o resultado é a mais desconcertante adaptação de uma realidade que se repete ad infinitum e se reafirma de tempos em tempos. Seja pelo dom profético ou por uma análise precisa dos padrões, é surpreendente notar como a obra de George Orwell jamais fica datada.

Ele deve estar lá em cima, no hipotético céu, sentado ao lado direito de Maquiavel, trazendo nos lábios aquele sorriso torto de “eu não disse?”

Pensando bem, é de arrepiar. Você já reparou? He is watching us!